Psicomotricidade, uma perspetiva da sua história
- Marta Fonseca e Joana Oliveira
- 25 de mar. de 2017
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É sabido que, na Antiguidade, os filósofos já se interrogavam e debatiam acerca do funcionamento humano, esquematizando-o da seguinte forma: de um lado, um espírito, o pensamento, o psiquismo e a alma; do outro um corpo e a matéria. Os exemplos destes modelos são inúmeros, entre os quais, tome-se o seguinte exemplo: uma cabeça contém uma alma que habita e dirige um corpo, durante a vida. Após a sua morte, abandona-o, tal como podemos verificar na citação ilustre de Descartes “Penso, logo existo”. Foram estes debates sobre as interações entre as duas entidades, o psiquismo e o corpo, que arquitetaram o paradigma que sustenta a Psicomotricidade (Potel, 2010).
O desenvolvimento e o funcionamento humano compreendem três grandes pilares indissociáveis e em permanente interação: a motricidade, as sensações e a representação. Por outras palavras, a criança, o adulto e o idoso sentem e pensam de acordo com os seus processos auto organizacionais: a motricidade constrói a inteligência, as sensações e emoções interferindo nos atos motores voluntários e as representações mentais preparam e facilitam a ação e as sensações. (Potel, 2010). Segundo Potel (2010), é importante relembrar que a existência da Psicomotricidade se reporta a uma luta, iniciada na década de 70, conflituosa e particular de reconhecimento face a outras identidades profissionais, que ainda se observa, atualmente. Existem quatro datas importantes e essenciais que permitiram o desenvolvimento da prática psicomotora, em 1800, 1850, 1900 e 1950.
Em 1800, A primeira data remonta ao “mito das crianças selvagens”. A medicina, nesta altura, ainda não era considerada uma ciência muito desenvolvida e ainda pouco anunciava o funcionamento interno do corpo; a filosofia era o domínio do saber. Foi precisamente neste ano que, em França, surgiu o caso de uma criança nua, com pouco investimento corporal e que, ao ser perseguida por três caçadores, se refugiou na casa de um pintor. Não falava, os gestos eram desorganizados. Criou-se, então, a imagem da condição do “Homem abandonado a si mesmo”, ideia que não encontrava acolhimento na teoria do desenvolvimento da inteligência, concluindo-se que o diagnóstico era de “idiotice intratável”. Mais tarde, surgiu um programa psicopedagógico que suprimia a falta de educação, estimulava o desenvolvimento sensorial que servia de estímulo ao desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da consciência moral, realizando, assim, a reeducação de crianças selvagens. Este foi, indiscutivelmente, um grande passo na compreensão do atendimento da psicomotricidade. Na verdade, existem crianças privadas de educação humana, nos seus primeiros anos de vida, com caraterísticas de perturbações psicomotoras – à semelhança de casos que se podem observar na clínica -em que existem capacidades corporais, mas em que o funcionamento da criança não é o mais correto. Este paradigma desconstruiu-se, mais tarde, através das teorias de desenvolvimento harmonioso, segundo Spitz, Piaget, Wallon e Ajuriaguerra, que defendiam que é necessário que este desenvolvimento aconteça da melhor forma, num ambiente securizante e estimulante, caso contrário a triangulação entre as sensações, a motricidade e as representações não se estabelece de modo correto. Os atrasos no desenvolvimento psicomotor, quando detetados atempadamente, permitem a realização de exercícios que estimulam as habilidades motoras, os sentimentos, o desenvolvimento neuronal e permitem a capacidade de mentalização (Potel, 2010).
Em 1850, nasceu o termo psicomotor. O final do século XIX perspetiva uma nova visão, baseada na filosofia positiva e no materialismo histórico, rompendo, assim, com a visão idealista e romântica do período anterior. O aparecimento destes termos é, sobretudo, simbólico, pois não estiolam as ideias defendidas no período anterior, pelo contrário, aceitam e valorizam o nascimento de ideias e práticas que não são menos importantes que as anteriores. Graças ao trabalho de Lehmans, pudemos conhecer o primeiro autor que se refere ao adjetivo “psicomotor”, o médico e psiquiatra alemão, W. Griensinger que, volvido meio século, o utiliza para descrever a hipotonia do deprimido, em 1843. Em 1870, Hitzig, psiquiatra e assistente de anatomia de Fritsch, descobre, na sua garagem, que a estimulação elétrica e direta de um cão, não anestesiado, desencadeia reações musculares, conseguindo ainda mapear o cérebro por áreas psicomotoras, intermédias, motoras e áreas reservadas ao pensamento, confirmando as teorias anteriores de que a mente e o corpo se encontram em relação.
Em 1900, Philipe Tissé, em 1901, afirmou que a educação física não se deve entender apenas como exercícios musculares, mas também por centros psicomotores e pelas associações múltiplas, entre o movimento e o pensamento (Costa, 2008). Um passo em relação ao dualismo que vigorava até então.O início deste século foi marcado pelas revoluções russas e pela Primeira Guerra Mundial. Porém, antes destes acontecimentos mudarem os pensamentos europeus, um aluno de J.M.Charcot, Edouard Dupré, traz a lume a noção de Reeducação Psicomotora, por volta de 1907 (Potel, 2010). Associa-se ao termo de Debilidade Mental, sustentando-se em esquemas de reeducação em três sintomas: inabilidade, sincinesia e paratonia (Costa, 2008). Dupré descreve os problemas que irão selar a componente essencial na psicomotricidade. Descreve uma anomalia que dissocia as questões motoras das psíquicas. Segundo este autor, existe uma ligação constante entre o movimento e o pensamento (Potel, 2010).
Em 1925, após a Primeira Grande Guerra, Henri Wallon, médico psicólogo, no seu primeiro grande trabalho A Criança Turbulenta fundamenta o desenvolvimento psicomotor e a evolução mental da criança, fazendo associações aos distúrbios conhecidos desse desenvolvimento e evolução (Costa, 2008). Lussac, (2008), no seu estudo sobre a história da psicomotricidade acrescenta que Wallon se ocupou do estudo do movimento humano, dando-lhe uma categoria fundante como instrumento na construção do psiquismo, o que permitiu relacionar o movimento ao afeto, à emoção, ao meio ambiente e aos hábitos do indivíduo, bem como sobre o tónus e relaxamento. Camus Torres e Maria (2009) diferencia o trabalho de Dupré e o de Wallon, referindo que o primeiro fundamentou os seus estudos relacionando a motricidade com a inteligência, enquanto o segundo a relacionou com a personalidade e características.Esta diferença permite relacionar o movimento ao afeto, a emoção ao meio ambiente e aos hábitos da criança. O conhecimento, a consciência e o desenvolvimento geral da personalidade não podem ser isolados das emoções. Wallon realizou um importante trabalho sobre os aspetos psicofisiológicos da vida afetiva, a consciência corporal, a relação intrínseca entre tónus – emoção, chamando de diálogo tónico e assinala que a atividade de relação e a atividade postural têm, na sua origem, uma raiz comum (Torres & Maria, 2009).
Em 1935, Guilmain coloca em prática a Reeducação Psicomotora, ao propor um método sustentado em exercícios de educação sensorial, exercícios de desenvolvimento da atenção e exercícios de trabalhos manuais (Costa, 2008). Concomitantemente, este neurologista desenvolve um exame psicomotor para fins de diagnóstico, de indicação terapêutica e de prognóstico (Lussac, 2008). O trabalho de Wallon amplia-se com publicações Do Acto ao Pensamento (1942), e As Origens do Pensamento (1945), assinalando a aplicação da Psicomotricidade e atribuindo a importância do movimento à elaboração do pensamento (Costa, 2008). Na Alemanha, em 1942, Kofka, Kohler e os psicólogos da Gestalt, interessaram-se pelos mecanismos da perceção. Os trabalhos de Schultz ou de Jacobson que definiram os primeiros métodos de relaxação e os psicopedagógicos que estudaram o desenvolvimento sensório-motor da criança, como Clapariede, Montessori e Piaget na área da Psicologia evolutiva, propiciaram uma melhor compreensão no desenvolvimento da criança (Torres & Maria, 2009).
Em 1950, Jean Piaget desenvolve o seu estudo dando um grande contributo para o desenvolvimento da Psicomotricidade. Para este autor, a inteligência resulta da experiência motora integrada e interiorizada cujo processo de adaptação é essencialmente o movimento. Contribui com conceitos como a Assimilação, Acomodação e Adaptação que refletem o processo de aprendizagem. A primeira, a Assimilação, constitui a experiência sensório-motor do movimento. A segunda, a Acomodação, é o resultado do efeito do mundo envolvente da criança, a influência do meio externo e, por fim, a Adaptação surge do equilíbrio entre a assimilação e a acomodação (Potel, 2010, Costa, 2008). As contribuições de Ajuriaguerra, por volta de 1960, somadas às de Wallon e Piaget, influenciaram o curso de pensamentos de outros autores como R. Diatkine, J.Buges, Jolivet, S. Leboaci, permitindo-lhes redefinir os objetos da psicomotricidade, dando ênfase especial à relação, às emoções e ao movimento (Torres & Maria, 2009). Ajuriaguerra, em colaboração Soubiran, elabora um exame psicomotor em que avalia esses distúrbios. Com os resultados obtidos, determinava-se, assim, a Reeducação Psicomotora da criança ou do jovem que se fundamentava em exercícios específicos que contrariavam os sintomas do distúrbio (Costa, 2008). André Lapierre e Bernard Aucouturier, práticos de Educação Física, debruçaram-se sobre os modelos até então existentes e desenvolveram um novo método que se afastava da atitude “Testador-Reeducador-Reparador”, aproximando-se de uma postura mais terapêutica (Costa, 2008). Estes autores, entre outros, trouxeram conhecimentos e soluções inspiradas na psicologia genética, a qual evidencia que a criança desenvolve o conhecimento de si mesma e do mundo através da sua ação. Com estas contribuições, a psicomotricidade diferenciou-se de outras disciplinas adquirindo sua própria especificidade e autonomia (Torres & Maria, 2009).Levin (2003) (cit in Torres & Maria, 2009) mostra que as contribuições da psicanálise passaram a integrar os interesses teóricos e metodológicos da psicomotricidade e em 1977, Samí Ali, laça uma proposta para articulações entre as teorias psicanalíticas e a psicomotricidade.
Assim, a Psicomotricidade incorporou nas suas construções teóricas vários conceitos psicanalíticos, como o inconsciente, transferência, imagem corporal, sublimação entre outros.Passamos para uma Pedagogia mais aberta e livre, explicada por Claude Paquette, em que a criança é o centro e o ponto de partida para a ação. As aprendizagens são fruto dos seus interesses e os objetivos de acordo com o seu ritmo (Costa, 2008). João dos Santos foi pioneiro no desenvolvimento de uma abordagem relacional da Psicomotricidade. À semelhança de Wallon, em Paris, seguindo o seu modelo reformador e integrador, na área da educação e saúde, foi também promotor de um modelo psicogénico/dialético em Portugal. A saúde mental passa a integrar a participação do meio que envolve a criança (escola, pais e criança), compreendendo-a na globalidade, como um ser em relação. Depois de exilado em França, privou com grandes mestres, como Wallon, Lebovici, Ajuriaguerra e René Spitz (Branco, 2010) e traz para Portugal uma perspetiva mais abrangente e holística do indivíduo em saúde mental e educação. O interesse de João dos Santos pela Psicomotricidade foi sempre uma nota importante em toda a sua carreira. Ressalvava a importância da vida emocional da criança num paradigma em triangulação entre o corpo, o espaço e o conflito (Costa, 2008). Pedro Soares Onofre, foi responsável pela divulgação da Psicomotricidade por todo o país, no seu jeito peculiar de interrogar a institucionalização do adquirido inquestionável, numa atitude de, sem pressa, desmontar preconceitos, alguns moralistas, outros onde a verdade parecia irrefutável, sempre em defesa da criança, defendendo uma metodologia baseada na criatividade, descoberta e de iniciativa, privilegiando a relação (Costa, 2008). Por outro lado, Vítor da Fonseca foi também um importante autor da Psicomotricidade em Portugal. Com este autor, surge uma ideia mais funcional e de estudos sobre a origem da psicomotricidade do indivíduo, baseando-se em estudos sobre a filogénese e ontogénese da motricidade. Desenvolve também uma Bateria Psicomotora que visa o diagnóstico de problemáticas psicomotoras.
Referências Bibliográficas:
Branco, M. (2010). João dos Santos - Saúde Mental e Educação (2a ed.). Lisboa: Coisas de Ler, Lda.
Costa, J. (2008). Um Olhar para a Criança (1a ed.). Lisboa: Trilhos Editora.
Lussac, R. (2008). PSICOMOTRICIDADE: HISTÓRIA, DESENVOLVIMENTO,CONCEITOS, DEFINIÇÕES E INTERVENÇÃO PROFISSIONAL. Universidade Castelo Branco.
Potel, C. (2010). Être Psychomotricien un métier du present, un métier d’avenir.
Toulouse: Érès.
Torres, H., & Maria, B. (2009, August). Breve histórico da psicomotricidade. Ensino, Saúde E Ambiente, 2, 84–96.
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